sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A Amazônia e a economia global


A Amazônia e a economia global - UFRR 06/08/2009


Bertha Koiffmann Becker é parte essencial do patrimônio científico brasileiro. Nascida em 1930 no Rio de Janeiro, formou-se em Geografia e História pela Faculdade Nacional de Filosofia da UFRJ em 1952 e obteve doutorado no Instituto de Geociências da UFRJ em 1970. Confira a seguir a entrevista exclusiva (na íntegra) concedida ao jornalista Avery Veríssimo (UFRR).
Becker é pós-doutora pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT – EUA, 1986) e professora emérita da UFRJ desde 2000. Entre outras honrarias e homenagens, ela já foi agraciada com a medalha David Livingston da American Geographical Society e é doutora honoris causa da Universidade de Lyon (França).
Nos últimos 50 anos, a geógrafa tem se dedicado a estudos de alta complexidade que vão da economia à tecnologia, da Geopolítica da Amazônia a gestão de territórios. Provocadora, perde facilmente a paciência com jornalistas. Que o diga uma equipe local de televisão. Nesta entrevista, Becker mostra seu afiado senso de humor ao falar de geopolítica, mineração em terra indígena, bioprodução e mercado profissional no campo da Geografia.
Coordenadoria de Imprensa – O Estado de Roraima tem uma geografia peculiar, localizado entre duas fronteiras e com diferentes formações de florestas e savanas. Como isso pode ser aprveitado do ponto de vista da economia e da infraestrutura?
Bertha Becker - Acho que Roraima tem uma posição geográfica que lhe dá um potencial de valor estratégico geopolítico muito grande. Tenho estudado a história da Amazônia e percebido que é uma história diferente da do Brasil. A história da Amazônia é mais parecida com a história do Caribe. São séculos de pirataria, incursões, expedições, várias potências abocanhando pedaços. Esta sempre foi uma região voltada para o mundo, disputada por potências, num modelo mais próximo do Caribe do que do modelo brasileiro. No caso amazônico, o Pará, por exemplo, conseguiu se estabilizar e se consolidar mais cedo. Tem maiores ligações com o Brasil e um modelo de ocupação e povoamento diferentes. Já Roraima, fiquei sabendo, foi uma região que recebeu muitas expedições de diversos países, que negociavam com os índios do vale do rio Branco, onde havia uma densidade populacional elevada. Mas dos colonizadores, eles preferiam ter contato com os holandeses, já que Portugal queria expulsá-los e se apropriar do seu território.
CI – Os índios consideravam os holandeses mais fáceis de lidar. Tinham negócios com eles, enquanto os portugueses queriam escravizá-los.
BB – Exatamente. A essa história dão pouca importância, mas ela é crucial. Roraima tem esse acesso ao Caribe que é de um valor extraordinário. Embora não tenha acesso direto ao mar, pode ter via Georgetown [Guiana]. É mais fácil que através da Venezuela, já que todo o continente anda preocupado com o presidente Hugo Chávez. Roraima tem um importante papel de articulação do Brasil com o Caribe. Não só com a vizinhança, Venezuela e Guiana, mas com os demais membros da comunidade do Caribe. No meu último trabalho, chamei a Amazônia de “fronteira mundi”. Gosto de inventar umas coisas de vez em quando (risos). Estou chegando à conclusão que existe aqui um círculo virtuoso ou vicioso. A Amazônia não se desenvolve porque não está integrada. E não está integrada, por isso não se desenvolve.

CI – É um silogismo interessante, dependendo do ponto de vista. Mas a falta de integração terrestre com o restante do Brasil não enfraquece cidades como Manaus e Boa Vista?
BB – Sim, é preciso romper esse impasse para que essa integração seja planejada. Por via terrestre não tem importância. Manaus pode se ligar com outros países por via aérea. Mas por problemas políticos do Brasil, nunca desenvolvemos a navegação fluvial, tendo o potencial de rios que temos. Recentemente prestei consultoria para a Agência Nacional de Águas (ANA) e enfatizei a necessidade de desenvolver o transporte fluvial. Temos água em toda parte. O que existe de circulação fluvial é uma porcaria. Por causa do regime de chuvas e da floresta, as estradas arrebentam. A ANA adorou minha visão sobre o tema, porque demonstrei que a natureza deve orientar o povoamento e a circulação. Eles gostaram, vão incorporar ao projeto e vão fazer pressão pela circulação fluvial. Temos um potencial fantástico não-aproveitado.

CI – Como aproveitar esse potencial de forma inteligente em setores como a produção agropecuária?
BB – Na Amazônia existem florestas densas, que estão relativamente íntegras; florestas abertas, usadas principalmente na pecuária e extração de madeira e florestas de transição e serrados. Um dos potenciais é esse zoneamento próprio da natureza, que tem uma diversidade ecológica fantástica. Pode-se fazer 500 coisas diferentes se respeitarmos o que a natureza indica. Não acho que a Amazônia deve ser uma fronteira de assentamento. Os modelos de assentamento feitos pelo Incra deviam acabar. É um genocídio. Falo sempre isso e não tenho medo de falar. Estou sendo pesada?

CI – De certa forma, a política de colonização continua aprisionada a uma visão oitocentista, do extrativismo selvagem.
BB – Como é possível produzir assim? A estrada vira lama, ninguém consegue viver assim. Só serve para o colono morrer de fome. Antes, ele derruba as árvores e repassa para as
madeireiras. Depois vende a terra para o pecuarista. As terras de assentamentos terminam apropriadas pelos fazendeiros. O problema é que ninguém nunca respeitou a sofisticada natureza amazônica. Temos que aproveitar o que a natureza nos concede da melhor maneira possível, sem destruir, empregando políticas corretas. Você falou sobre os diques que cercam Georgetown. Também é um olhar errado para a Amazônia, achando que somos a Holanda. Tenho proposto desenvolver a região respeitando o zoneamento que a natureza estabeleceu. Para a mata densa proponho desenvolvimento da bioprodução, gerando cosméticos e fármacos. O potencial é fantástico. Um dos aproveitamentos não destrutivos seriam os óleos vegetais e serviços ambientais. Também podemos produzir etanol de segunda geração a partir do resíduo da celulose. Não se trata apenas de carbono, essa é uma visão muito limitada para o valor que a natureza tem. Ficam vendendo carbono em Chicago e na Europa a um preço vil. Por isso defendo que Manaus deve se preparar para ser uma cidade mundial baseada na prestação de serviços ambientais. Cidades mundiais contam com serviços avançados e especializados, têm agências financeiras, marketing, direito internacional, enfim serviços especializados. Mas nenhuma tem serviço ambiental. Acho que deviam criar uma bolsa de valores em Manaus. Manaus precisa ser uma cidade globalizada.

CI– Como a senhora viu a conclusão da polêmica Raposa Serra do Sol?
BB – Engraçado. As pessoas ficaram surpresas com o resultado final, tão tranquilo, quando se esperava uma guerra de anos a fio. Mas foi quase uma unanimidade. Todo mundo achou ótimo. Para mim foi uma surpresa. Não foi uma surpresa pra você?

CI- Para mim, especialmente, não. Na verdade já esperava um resultado assim.
BB – Esperava, é? Por quê?

CI– Pelas visões científica e romântica sobre a questão. Raposa Serra do Sol é um problema epistemológico que envolve política, antropologia, agricultura, mineração. Complexo demais para quem julga conhecê-lo apenas por um viés político...
BB - Sem dúvida. Por isso mesmo fiquei surprised (risos). Acho ótimo, mas gosto muito de provocar. Fico pensando se esta unanimidade por acaso não esteja acobertando outros interesses, tais como a guerra que se trava no Congresso Nacional para abrir a mineração para empresas estrangeiras. É chato que eu estou falando? Capaz de alguém soltar uma bomba em cima de mim (risos). Agora com aquele Lobão [Edison Lobão, o senador que defende o projeto], o negócio está mais acesso. O ISA [Instituto Sócio-Ambiental] está metido nisso. Seja o que for, tem que passar pela comunidade. A Vale do Rio Doce quer estender as garras pra cá, também. A mineração vai voltar a ser valorizada, porque ninguém quer ficar sem mineração.

CI- Quais podem ser as vantagens desse modelo?
BB - Depende de como se estabelece as regras. Se os índios tiverem participação ativa, será ótimo. Aqui, não conheço, mas em São Gabriel da Cachoeira, no alto Solimões, os índios querem consumir. O consumo não vai acabar com a cultura se tiverem base econômica para o seu bem-estar. Não se pode dar terra aos índios e simplesmente soltá-los lá. Bebem pra caramba, perdem sua cultura, passam a ter mais filhos para ganhar bolsa-família. Tiram
aposentadoria em vários municípios. Não sei como é em Roraima, mas os índios de lá são espertíssimos (risos). Acho ótimo, porque é um direito deles.

CI– Uma vez em Roma...
BB – ... aja como os romanos (risos). Eles têm os seus expedientes para ganhar dinheiro, o que é justo. Querem comprar coisas. Mas o Brasil tem que fazer uma política indigenista adequada. Atividades que não destruam sua cultura, mas que dê condições de ter uma vida melhor. Se houver mineração com participação, aí sim. Afinal, muitos já têm familiaridade com a mineração. Mas apenas 1 por cento sobre o lucro é muito pouco. Poderia ser um pouco mais.

CI– Na UFRR está em fase de implantação o curso de Gestão Territorial destinado especificamente a indígenas que tenta criar ferramentas de conhecimento para que possam trabalhar as questões relativas ao seu território.
BB – Eu não estou mais acreditando só em cursos, somente em teorias. Tem que haver prática.

CI– No Núcleo Insikiran o modelo é diferenciado. Os alunos passam dois meses em Boa Vista e o restante do semestre na comunidade. Os professores se mudam pra lá.
BB – Aí sim. Porque pela minha experiência, os professores aprendem também. Os professores precisam conhecer direito a realidade do que vão ensinar, para ver os problemas de perto e agir de acordo com a prática. Uma coisa é a teoria. Outra é ir lá e ver como é que é.

CI– A globalização da cultura e do turismo, aparelhos de GPS [Global Point Satellite] e programas de computador como o Google Earth e Nasa World Wind popularizam o interesse pela Geografia. Isso permite afirmar que a Geografia é um campo promissor no século 21?
BB - Acho que a profissão de geógrafo tem amplíssimas possibilidades, como você diz. A globalização de culturas exige que o cidadão do século 21 conheça o seu mundo, a formação de cada lugar e compreenda as relações com a economia e com a política. O mundo globalizado exige isso cada vez mais. O geógrafo tem um papel orientador e analítico nesses temas. Mas é necessário que cada região tenha currículos – e não me refiro apenas aos cursos de Geografia – adequados à sua realidade. No geral, as disciplinas são as mesmas em todas as regiões do País. Nossos currículos são ridículos.

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