terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Resenha: Um Futuro para a Amazônia

Gloria Maria Vargas
Professora Adjunta, Departamento de Geografia,
Universidade de Brasília
yoya@uol.com.br; yoya@unb.br


BECKER, Bertha e STENNER, Claudio. Um Futuro para a Amazônia. São Paulo: Oficina de Textos, 2008. Série “Inventando o futuro”. 150 p. ISBN 978-85-86238-77-2.

Incluído na série “Inventando o Futuro”, da Editora Oficina de Textos, Um Futuro para a Amazônia apresenta uma discussão substantiva sobre caminhos possíveis para o futuro da região amazônica. Resultado de mais de trinta anos de pesquisas na Amazônia, os pesquisadores Bertha Becker e o Claudio Stenner apresentam uma visão coesa e muito bem fundamentada das potencialidades da região, num contexto de globalização, rearranjos geopolíticos e novas valorações do espaço geográfico.
O livro está organizado em sete partes ou capítulos, articulados a partir da explicitação das potencialidades amazônicas como região única no contexto brasileiro, sul-americano e mundial. Cada capítulo apresenta um aspecto dessa potencialidade, exposto com independência argumentativa, respaldo empírico e fundado numa profunda compreensão geográfica e histórica da região.
A obra tem o mérito de oferecer ao mesmo tempo um enfoque geográfico e geopolítico da Amazônia e de transitar pelos campos da economia política e da história. Simultaneamente, esses campos do conhecimento dialogam a partir da realidade regional, sem que se perda o fio condutor nem a coerência interna da argumentação.
Da perspectiva da geografia, descreve e analisa com maestria o espaço amazônico, considerando os seus atributos naturais e o processo de formação do seu território, bem como a produção do seu espaço, sob as diferentes lógicas que atravessaram o território e a partir de diferentes escalas.
O capitulo de abertura expõe a formação da Amazônia, colocando um dos pontos centrais da argumentação dos autores: o fato de se ancorar na economia-mundo como categoria de análise. A região seria inicialmente a parte periférica da lógica que origina a economia de fronteira, alicerçada na relação sociedade-natureza. Essa dicotomia, que ainda perpassa a compreensão da região, postulava a inesgotabilidade dos recursos naturais, o que garantiria o seu crescimento perpétuo.  Essa fronteira, no entanto, é móvel e dinâmica, porque registra o deslocamento contínuo do povoamento e o processo de produção do espaço.
Mas, qual o papel da ciência, da tecnologia e da inovação nesse contexto?  Sempre foram centrais na expansão da economia mundo, no sistema capitalista e na descoberta e apropriação de novos nichos de valorização regional,  tais como terras e recursos naturais.  A inovação é constantemente estimulada para a construção de um novo ciclo de valorização.  Nesse sentido, a ciência, tecnologia e informação fazem parte da geopolítica do território na medida em que produzem informação-conhecimento, ações e perspectivas estratégicas para o controle e utilização do território.
Na expansão da economia mundo se explicita a lógica da configuração e reconfiguração do território amazônico em diferentes momentos históricos e da sua vulnerabilidade aos processos que transcendem as suas fronteiras. Dessa forma, apresentam-se, já no século XVII, as duas lógicas diferentes que a perpassam: a externa, que privilegia as relações com a metrópole, e a interna que ressalta as necessidades e potencialidades desde dentro, desde uma perspectiva endógena.
Na narrativa sobre a integração regional, descreve-se a importância do planejamento governamental para garantir o controle territorial e a possibilidade de intervenção na economia regional, não sem considerar os conflitos sócio-territoriais embuídaos no processo. Nesse contexto, a tecnologia territorial do Estado brasileiro é salientada, com os diferentes programas de desenvolvimento, os arranjos institucionais e a malha político administrativa que deram contexto operacional, político e logístico às ações governamentais ao longo do século XX.
O processo de urbanização da região, junto com o adensamento da conectividade estrutural do território, a organização da sociedade civil e a apropriação “desde dentro” da região são algumas mudanças estruturais pelas quais a Amazônia vem passando, como parte das suas dinâmicas contemporâneas, tendo CT&I como propulsores centrais. No entanto, os autores explicitam uma incógnita para a Amazônia na sua passagem para o século XXI: como superar a dicotomia desenvolvimento-conservação e traçar um futuro regional que lhe permita ser um heartland ecológico?
É um futuro que permita valorizar os recursos endógenos, levando em consideração a dinâmica da economia mundial e a expansão dos mercados para recursos como água, energia, alimentos, fármacos etc., e compatibilizar esse processo com a conservação da natureza e a inclusão social da população.
Essa pergunta é respondida nos capítulos seguintes, dedicados aos temas da biodiversidade, dos recursos hídricos, da conectividade e da urbanização da região, além do capítulo final, que discute diretamente qual é o futuro efetivamente possível para a região.
A imaginação geográfica é central a essa resposta, entendida como consciência espacial que reconhece, discerne e aceita as potencialidades e limitações regionais no delineamento das ações, pautada numa coerência ética e técnica. Nessa consciência espacial, a ciência e a tecnologia são de novo protagonistas já que, corroborando o argumento inicial do livro, têm sido e continuam sendo parte fundamental na modelagem do espaço geográfico amazônico.  Nesse processo, o conhecimento é valorizado, ao colocá-lo como núcleo centrípeto que, iluminando o presente, permite a imaginação fértil das possibilidades do futuro.
No bojo dessa imaginação geográfica se esboça o modelo espacial possível e desejado, o de uma floresta urbanizada, com cidades que sejam expressão do conhecimento regional, tanto tradicional quanto ou mais avant guarde em ciência e tecnologia, conectadas entre si, com o resto do Brasil e com a América do Sul. Essas cidades comandariam cadeias produtivas baseadas na biodiversidade regional e que não destruam a floresta.
Nesse sentido, confirma-se a necessidade de superar o pensamento dicotômico que emoldura toda ação amazônica na disjuntiva desenvolvimento – conservação, que tem polarizado as posições e as políticas públicas.
É nesse espírito de pensamento que se propõe produzir para conservar, isto é, ter consciência do valor econômico dos recursos amazônicos, como a madeira, a água, a biodiversidade etc. e criar as condições produtivas que garantam a conservação desses recursos concomitantemente ao seu uso sustentável.  Mais uma vez, ciência, tecnologia e inovação são protagonistas nesta empreitada. Precisa-se de um novo paradigma de CT&I para organizar a base produtiva sem destruir a natureza.  CT&I são, dessa forma, condições necessárias para viabilizar o desenvolvimento.  Só uma revolução tecnológica poderá utilizar os recursos da floresta em pé sem destruí-los.
Seria gerada assim uma economia da floresta baseada num novo paradigma tecnocientífico que perpasse todos os componentes de uma estratégia de desenvolvimento regional. Mas, para isso, é preciso ainda superar e resolver alguns problemas e dinâmicas presentes na região, como as desigualdades sociais e regionais e a questão fundiária. Na Amazônia perdura o problema estrutural da apropriação da terra em meio a intensos conflitos e violência. É necessário também enfrentar e resolver a carência logística regional e a má condição das redes de transporte, de serviços de informação/comunicação, de energia e armazenagem. São essas redes que garantem a conectividade do território e produzem uma malha territorial integradora.  Essa conectividade deve dar densidade às redes urbanas da floresta urbanizada. A estrutura reticular garante um padrão espacial e as funções territoriais que viabilizem o diálogo com as demandas sociais e com os imperativos econômicos, num contexto cambiante de globalização, sem destruir o meio ambiente.
Nesse contexto, antecipa-se a necessidade de que essa estrutura permita a conexão e integração regional com a América do Sul, num arcabouço multimodal de transporte e energia e baseado numa visão de integração aberta. Dessa maneira, é possível reduzir ao mínimo as barreiras internas ao comércio, e os gargalos na infraestrutura e nos sistemas de regulação que sustentam as atividades produtivas de escala continental. Da mesma forma, há que se considerar eixos de desenvolvimento que favoreçam o acesso a áreas de alto potencial produtivo, sem que se intensifiquem as dinâmicas perversas de desigualdade e depredação ambiental, velhas conhecidas do continente.
Num território complexo e diverso como a Amazônia, os autores explicitam o fato de que coexistem diferentes espaços-tempos. Há comunidades indígenas e grandes metrópoles coexistindo no espaço regional, diferentes graus e intensidades de conhecimento tradicional e científico, formas arcaicas e violentas de uso e apropriação dos espaços e dos recursos que vivem lado a lado com formas de alta produtividade - nem sempre por isso menos violentas -, inseridas numa malha político administrativa que insinua uma modernidade em mosaico, uma estrutura territorial com múltiplas caras e dimensões.
Essa estrutura territorial deve privilegiar os fluxos e a estrutura produtiva em forma de rede e deve permitir a interconexão entre os centros urbanos da floresta urbanizada e policêntrica, a partir dos quais se comande o processo de desenvolvimento e de subregionalização. Nessa subregioanlização, consideram-se as áreas de imperativa preservação, que correspondem às atuais unidades de conservação de proteção integral e as terras indígenas.  Mas, consideram-se também novas categorias, como as florestas produtivas baseadas no uso da biodiversidade, as florestas madeireiras, as regiões com potencialidade para projetos logísticos e minerais, e as áreas alteradas para reflorestamento e projetos agroindustriais.
No coração dessas propostas está o imperativo de uma revolução científico- tecnológica que permita concretizar o novo paradigma proposto, a partir da consciência espacial sobre a região. Esse paradigma integra o uso dos recursos num modelo não predatório, cuja lógica se concretiza na multifuncionalidade do espaço regional.  Esse modelo precisa de uma solidez institucional e política que permita a operacionalização coerente das ações nas diferentes frentes de políticas públicas.
O livro nos presenteia com uma visão bem informada da região amazônica, uma visão que contesta o mais recorrente dos seus mitos, a impossibilidade da concomitância natureza-desenvolvimento. Além disso, nos revela, efetivamente, o prometido no título: uma proposta de desenvolvimento articulada, inter-escalar e interdisciplinar para a Amazônia. A implementação dessa proposta vai depender da capacidade de articulação da sociedade regional e das diferentes instâncias de decisão, que deverão reconhecer que existe uma proposta realizável e à disposição para uma rica e instigante leitura.

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